Brasil: Violência é divergência de opinião e desinformação é liberdade de expressão, insinua governo em audiência na CIDH
A Repórteres sem Fronteiras (RSF) e outras 13 organizações da sociedade civil denunciaram violações dos direitos à informação, saúde e educação no Brasil em audiência realizada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH/OEA)
Sete meses depois de apresentar denúncias de violações à liberdade de expressão e de imprensa, organizações da sociedade civil brasileira voltaram a se reunir com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), nesta terça-feira (6), para denunciar o agravamento da situação no país. Em resposta às denúncias, o governo Bolsonaro afirmou que a violência sofrida por jornalistas é "divergência de opinião" e que medidas de isolamento social durante a pandemia de COVID-19 “feriram direitos” da população.
As organizações apresentaram as violações ao direito à informação e os impactos destas na vida de indígenas, mulheres, população negra, crianças e adolescentes, moradores de favelas e periferias e população LGBTQI+, que têm sido privados do direito de acessar informações confiáveis. Durante a pandemia, a população mais vulnerabilizada e marginalizada do Brasil tem seus direitos à liberdade de expressão, à educação e à saúde gravemente violados.
“Voltamos sete meses depois, porque a conjuntura brasileira se agravou, e o Estado segue sem respostas convincentes às denúncias apresentadas. Ao contrário, a postura do presidente, de seus ministros e do Estado brasileiro tem sido, infelizmente, a de aumentar a agressividade contra a imprensa, promover censura contra veículos e jornalistas e violar o direito ao acesso à informação, tirando do ar informações de interesse público sobre a pandemia”, destacou Ana Flávia Marques, do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé.
Os ataques à imprensa foram denunciados pela jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha de S. Paulo, e por Pedro Borges, editor-chefe do portal Alma Preta. “A situação é especialmente crítica para as jornalistas mulheres. Somos alvo de campanhas de difamação estimuladas e amplificadas pelo governo. Desde fevereiro deste ano, circulam pela internet milhares de memes em que o meu rosto aparece em montagens pornográficas, me chamando de prostituta e fazendo alusões a órgãos sexuais. Recebo mensagens de pessoas dizendo que ofereço sexo em troca de reportagens e que deveria ser estuprada”, afirmou Mello.
Borges relembrou os insultos sofridos por parte do presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, que o descreveu como "racialista, vitimista, anti-branco e defensor de bandidos", após uma série de reportagens que denunciavam a censura da Fundação à biografia de personalidades negras.
A jornalista Camila Konder, da Repórteres sem Fronteiras, destacou que “ataques à imprensa por parte de políticos não são propriamente novos, mas no Brasil, desde a redemocratização, nunca vimos um sistema tão estruturado e tão agressivo. São ataques para desacreditar o jornalismo e semear na sociedade a desconfiança na imprensa”.
A diretora executiva da Artigo 19, Denise Dora, reforçou que “a desinformação é uma prática usual do governo e está completamente aliada ao ataque ferrenho, permanente e constante à atividade jornalística no país. Se produz desinformação atacando a imprensa livre e apagando dados públicos. É assim que se coloca uma população inteira refém de políticas que são nefastas e não democráticas”.
Sandra Andrade, da comunidade quilombola dos Carrapatos e da Coordenação Nacional da Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), ressaltou que o governo Bolsonaro não tem se mobilizado para enfrentar a pandemia nos quilombos e criar condições para quilombolas terem acesso aos direitos básicos. “Nós exigimos um plano nacional de enfrentamento à COVID-19 nas comunidades. Fomos até o Supremo Tribunal Federal para exigir nossos direitos para enfrentar a pandemia. Não esperamos nada menos do que todos os nossos direitos garantidos”, afirmou.
A coordenadora executiva do Intervozes, Iara Moura, reforçou a importância da garantia do acesso à Internet universal. “Dados deste ano revelam que, no Brasil, mais de 42 milhões de pessoas nunca usaram a Internet. E esses brasileiros e brasileiras têm cor, raça, etnia, origem social. Moram em zonas rurais ou nos bairros empobrecidos das grandes cidades. Na pandemia, o contexto é ainda mais grave: cerca de 7,4 milhões de brasileiros elegíveis para receber o auxílio emergencial não contam com Internet domiciliar”.
Considerando o cenário crítico ao acesso à informação que o país vive, o vice-presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos (CNDH), Leonardo Pinho, apresentou as recomendações elaboradas pelas organizações peticionárias. Entre elas, a restituição e ampliação dos espaços de participação e controle social nas áreas de formulação e fiscalização das políticas públicas e a garantia de mais transparência e a efetiva participação das organizações da sociedade civil no Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos, ampliando e fortalecendo o programa, com desenvolvimento de metodologia adequada à proteção de mulheres comunicadoras; a promoção do acesso à informação em todas as esferas; a universalização do serviço de acesso à internet e com isso a universalidade do direito à educação, à informação, à cultura e ao lazer; o desenvolvimento de políticas públicas de acesso à informação específicas aos Povos e Comunidades Tradicionais, quilombolas e indígenas, com destinação de recursos para tanto e a titulação dos territórios quilombolas; o fim dos ataques a jornalistas e comunicadores, bem como o reconhecimento do papel fundamental do jornalismo e da comunicação, mesmo quando contrários aos interesses do governo.
Por fim, foi solicitada à CIDH que seja feita uma visita in loco pela Relatoria Especial, a fim de apurar e acompanhar de perto as violações no país.
Governo repete respostas e acusa organizações
A desinformação, estratégia recorrentemente utilizada pelo governo Bolsonaro, também foi uma das marcas da audiência. O secretário de Comunicação Institucional da Secretaria Especial de Comunicação da Presidência (Secom) e ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro, Felipe Cruz Pedri, afirmou que o Estado brasileiro era vítima de perseguição ideológica e acusou as organizações presentes na audiência de censurarem supostos jornalistas e especialistas que defendiam posições contrárias àquelas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde.
“Venho em nome da Secom para lembrar a todos como o governo federal brasileiro lidou com a questão da liberdade de expressão durante esse período de preocupação global a respeito do coronavírus e da crise econômica causada por determinadas medidas de isolamento. O mundo todo vivenciou um período de grandes debates a respeito de medidas abusivas que violaram direitos básicos, como de ir e vir, de trabalhar e de exercer a prática religiosa. E ainda vivenciou o próprio debate virando alvo de tais medidas, que tentaram restringir a livre circulação das opiniões críticas e violaram assim mais um direito básico”.
Já o secretário nacional de Proteção Global do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Alexandre Magno, repetiu o mesmo discurso apresentado na audiência realizada no Haiti, em março passado. Depois de mostrar como a Constituição brasileira garante a liberdade de expressão, apresentou o Programa de Proteção a Defensores e Defensoras que, apesar de ter comunicadores no seu escopo desde setembro de 2018, incluiu apenas quatro jornalistas, sendo que somente um permanece no programa ainda hoje.
Mesmo depois dos testemunhos apresentados por Patrícia Campos Mello, Pedro Borges e Camila Konder sobre as graves violências - entre elas, frases como "Minha vontade é encher tua boca com uma porrada”, dita pelo próprio presidente Jair Bolsonaro ao responder à pergunta de um jornalista -, o representante do governo respondeu que essas falas seriam "divergência de opinião". “Ressaltamos que eventual divergência de opiniões e pensamentos faz parte do debate democrático no Brasil. Nesse sentido, o Estado brasileiro reforça o compromisso interno, regional e internacional com o respeito e garantia do direito ao livre exercício da profissão de comunicação e liberdade de pensamento e de expressão”, afirmou Marcelo Araújo, da divisão de Direitos Humanos do Ministério das Relações Exteriores.
A resposta de Araújo vai de encontro aos dados levantados por organizações como a Artigo 19, que listou 449 violações contra jornalistas e comunicadores cometidas por agentes públicos ligados ao governo federal, nos últimos 20 meses. Praticamente 1 vez por dia, desde janeiro de 2019, o presidente, seus filhos, senadores, deputados e ministros atacam a imprensa.
Também representaram o governo na audiência Flávio Werneck Noce, assessor especial do Ministério da Saúde; Bruna Vieira de Paula, coordenadora da Diretoria de Ações Internacionais do Ministério da Cidadania; e Débora Cristina Soares Santos, assessora do Ministério da Educação.
Entre os comissionados, o posicionamento mais contundente veio do presidente da CIDH, Joel Hernandez. “Quero expressar meu total rechaço aos ataques a jornalistas, seja por gênero ou raça. Isso vai de encontro aos fundamentos de uma sociedade democrática. O Estado tem a obrigação de respeitar e também de garantir os direitos humanos. Faço um chamado para que essas ações de caráter misógino cessem”.
Vale lembrar que a CIDH vem sofrendo intervenções e ataques à sua autonomia pela Organização dos Estados Americanos (OEA), apoiada por governos de extrema-direita, como o de Bolsonaro.
A audiência pode ser assistida na íntegra neste link.
A realização da audiência é resultado do trabalho de articulação de 14 organizações da sociedade civil:
- Abraji - Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo
- Anistia Internacional
- Artigo 19
- Centro de Estudos de Mídia Alternativa Barão de Itararé
- Coalizão Direitos na Rede
- Coding Rights
- Conectas Direitos Humanos
- Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH)
- Contee - Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino
- Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC)
- Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social
- Instituto Vladimir Herzog (IVH)
- Repórteres sem Fronteiras (RSF)
- Terra de Direitos