Estados Unidos: suspensão da ajuda internacional dos EUA por Donald Trump mergulha jornalismo global no caos
O presidente Donald Trump congelou bilhões de dólares em doações de ajuda internacional ao redor do mundo, incluindo mais de US$268 milhões alocados pelo Congresso para apoiar a mídia independente e o livre fluxo de informações. Denunciando uma decisão que mergulha ONGs, veículos de comunicação e jornalistas, que realizam um trabalho essencial, no caos da incerteza, a Repórteres Sem Fronteiras (RSF) apela aos apoiadores internacionais públicos e privados para que se comprometam com a sustentabilidade da mídia independente.
Desde que o novo presidente americano anunciou o congelamento da ajuda internacional norte-americana, a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) tem estado particularmente agitada: seu site está inacessível, sua conta X foi suspensa, a sede da agência foi fechada e os funcionários foram obrigados a ficar em casa. Na segunda-feira, 3 de fevereiro, o secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, anunciou que assumiria o cargo de chefe interino da USAID, confirmando a intenção expressa por Donald Trump e Elon Musk — que foi nomeado chefe do quase oficial Departamento de Eficácia Governamental (DOGE) — de colocar essa agência sob a liderança do Departamento de Estado. O bilionário sul-africano até expressou seu desejo de vê-la “fechar completamente”, chamando-a de “organização criminosa”.
Quase imediatamente após a suspensão, muitas organizações jornalísticas ao redor do mundo entraram em contato com a RSF, expressando sua preocupação e confusão. Os afetados são tanto grandes ONGs internacionais que apoiam a mídia independente – como o Fundo Internacional para a Mídia de Interesse Público (IFPIM) – quanto veículos de mídia menores que operam sob regimes repressivos em países como Irã e Rússia.
“O congelamento do auxílio financeiro dos EUA está causando caos em todo o mundo, inclusive no jornalismo. Os programas que foram congelados fornecem apoio vital a projetos que fortalecem a mídia, a transparência e a democracia. O presidente Trump justificou o decreto acusando — sem provas — a chamada "indústria de ajuda externa" de não estar alinhada aos interesses americanos. A trágica ironia é que essa medida criará um vácuo que poderá favorecer propagandistas e estados autoritários. A Repórteres sem Fronteiras (RSF) está lançando um apelo internacional a doadores públicos e privados para que se comprometam a garantir a sustentabilidade da mídia independente.”
Clayton Weimers
Diretor do escritório da RSF para a América do Norte
Os programas da USAID apoiam a mídia independente em mais de 30 países, mas é difícil avaliar a extensão total do impacto nos meios de comunicação. Muitas organizações afetadas relutam em chamar a atenção por medo de comprometer o financiamento de longo prazo ou enfrentar ataques políticos. De acordo com dados da USAID de 2023, a agência financiou ações de treinamento e apoiou 6.200 jornalistas, auxiliou 707 veículos de comunicação não estatais e apoiou 279 organizações da sociedade civil que trabalham para fortalecer a mídia independente. O orçamento de ajuda externa para 2025 incluiu cerca de 268 milhões de dólares (cerca de 261 milhões de euros) atribuídos pelo Congresso para apoiar “mídia independente e livre fluxo de informação”.
Em todo o mundo, veículos de comunicação e organizações tiveram que suspender algumas de suas atividades da noite para o dia. “Temos artigos previstos até o final de janeiro, mas depois disso, se não encontrarmos soluções, não poderemos mais publicar”, explicou um meio de comunicação bielorrusso no exílio que desejou permanecer anônimo. Nos Camarões, o congelamento do financiamento forçou o DataCameroon, veículo de comunicação de interesse público sediado em Duala, a interromper vários projetos, incluindo um focado na segurança de jornalistas e outro na cobertura das próximas eleições presidenciais. Um meio de comunicação iraniano no exílio – que preferiu permanecer anônimo – precisou suspender a colaboração com sua equipe por três meses e cortar salários ao mínimo necessário para tentar sobreviver. Uma jornalista entrevistada pela RSF alertou que o impacto desse congelamento de financiamento poderia silenciar algumas das últimas vozes livres, criando um vácuo que a propaganda estatal iraniana inevitavelmente preencheria. “Silenciar-nos dará a eles mais poder”, denuncia ela.
Na Ucrânia, a USAID é o maior financiador da mídia independente*
Na Ucrânia, onde nove em cada dez meios de comunicação dependem de subvenções e onde a USAID é o principal financiador*, vários veículos de comunicação locais já anunciaram a suspensão de suas atividades e procuram soluções alternativas. "Na Slidstvo.Info, 80% do nosso orçamento está alocado”, afirmou Anna Babinets, diretora e cofundadora deste meio de comunicação investigativo independente sediado em Kiev.
O risco dessa suspensão é abrir portas para outras fontes de financiamento que podem alterar a linha editorial e a independência desses meios de comunicação. “Alguns meios de comunicação podem fechar ou ser comprados por empresários ou oligarcas. Acredito que o dinheiro russo entrará no mercado. E a propaganda governamental, é claro, se intensificará.”, comentou Anna Babinets. A RSF já viu o impacto direto dessa propaganda: um vídeo forjado, falsamente carimbado com o logotipo da organização, alegou que a RSF estava acolhendo a suspensão do financiamento da USAID para a mídia ucraniana — posição que a RSF nunca apoiou. Não é a primeira vez que circula essa desinformação.
Encontrar alternativas rapidamente
A situação evidencia a fragilidade financeira do setor. “A suspensão do financiamento dos EUA é apenas a ponta do iceberg – um caso emblemático que ilustra a gravidade da situação”, afirmou Oleh Dereniuha, editor-chefe da mídia local ucraniana NikVesti, com sede em Mykolaiv, no sudeste da Ucrânia. Desde 2024, a mídia independente ucraniana tem lutado para garantir sua viabilidade financeira devido à diminuição do número de patrocinadores. Assim, mesmo pequenos cortes no orçamento podem colocar esses meios de comunicação em uma situação precária. Um relatório recente da RSF destaca a necessidade de focar na recuperação econômica da mídia independente ucraniana, enfraquecida pela invasão russa em larga escala de 24 de fevereiro de 2022, que a RSF estima que custará pelo menos US$96 milhões ao longo de três anos.
Além do declínio do apoio de patrocinadores, os meios de comunicação também enfrentam ameaças crescentes ao seu financiamento e modelos de negócio em outros países. Na Geórgia, enquanto a Lei sobre a Transparência da Influência Estrangeira – baseada na legislação russa – coloca em risco muitas organizações de mídia, o primeiro-ministro georgiano saudou a decisão do presidente americano.
Oficialmente, a suspensão deve durar apenas 90 dias, de acordo com o governo dos EUA. No entanto, alguns profissionais da mídia, como Katerina Abramova, diretora de comunicação do veículo em exílio Meduza, temem que a revisão dos contratos de financiamento demore muito mais. “Os meios de comunicação no exílio são ainda mais vulneráveis do que outros porque não podemos rentabilizar a nossa audiência e o financiamento coletivo tem seus limites – especialmente quando fazer doações ao Meduza é um crime na Rússia”, enfatizou ela.
Ao suspender abruptamente a ajuda americana, os Estados Unidos deixaram muitos meios de comunicação e jornalistas vulneráveis, desferindo um duro golpe à liberdade de imprensa. Para todos os meios de comunicação entrevistados pela RSF, a prioridade é se reerguer e encontrar urgentemente financiamento alternativo.
* Errata: informamos que 9 em cada 10 veículos de comunicação ucranianos recebem subsídios da USAID, mas na realidade 9 em cada 10 recebem ajuda internacional, sendo a USAID o maior doador para a mídia independente. Este erro, que lamentamos, foi corrigido