Américas

A imprensa alvo de ataques institucionais nos Estados Unidos e no Canadá

Como resultado do segundo ano do presidente Donald Trump no cargo, os Estados Unidos perderam três posições no Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa de 2019 e agora estão em 48º lugar entre 180 países. Alguns meses depois de entrar na lista dos países com o maior número de jornalistas assassinados no mundo, os EUA agora a categoria do Ranking classificada com a cor laranja, designando países onde o clima de liberdade de imprensa se mostra claramente problemático. O Canadá, por sua vez mantém sua posição no 18º lugar, mas essa estagnação é menos um reflexo de melhorias notórias do que uma deterioração geral da liberdade de imprensa em outras partes do mundo.

Da agressão verbal à violência física

Nos Estados Unidos, onde um clima cada vez mais hostil em relação à mídia americana se instalou desde a eleição de Donald Trump, o pior aconteceu em 28 de junho de 2018, na pequena cidade de Anápolis, Maryland. Um homem abriu fogo na redação do diário local "Capital Gazette", contra o qual ele havia alimentado um ódio irracional, matando quatro jornalistas e um funcionário do jornal.

Apesar desse drama terrível, um dos piores que afetaram o campo do jornalismo nos Estados Unidos, Donald Trump continuou sua campanha de difamação da imprensa. Ele atacou incansavelmente a mídia, mostrando seu profundo desprezo pela profissão.

Ao mesmo tempo, jornalistas de todo o país, particularmente mulheres e jornalistas negros, foram vítimas de assédio e ameaças de morte, tanto online quanto pessoalmente.

Nos eventos com Donald Trump, os repórteres foram vilipendiados ou fisicamente atacados por apoiadores do presidente no local. Algumas redações nacionais e locais receberam alertas de bomba, outras "pacotes suspeitos", às vezes forçando a polícia a evacuar o local. Em fevereiro de 2018, umaex-integrante da guarda costeira foi presa enquanto preparava ataques terroristas contra figuras da mídia e autoridades democratas. Em resposta a esse clima de medo, os jornalistas tiveram de recorrer a serviços de proteção privados e as redações por todo o país foram forçadas a rever seus dispositivos de segurança.

Um espaço cada vez mais restrito para os jornalistas

Além das ameaças físicas à mídia norte-americana, a profissão também enfrenta dificuldades financeiras significativas, assim como várias batalhas judiciais. Várias organizações de imprensa tiveram que fechar suas portas ou reduzir sua equipe, criando "desertos de notícias" em todo o país, seja em áreas rurais ou urbanas.

Repórteres que cobrem o governo Trump foram privados de acesso a informações ou eventos de interesse público. Assim, a Casa Branca bateu recordes de mutismo, escondendo-se com muita frequência por trás de longos silêncios midiáticos, sem permitir que os jornalistas tenham acesso ao presidente ou a seu porta-voz. Em novembro de 2018, ela chegou a retirar a credencial do correspondente da CNN, Jim Acosta, menos de três meses depois recusar o acesso a um evento oficial à repórter Kaitlan Collins em retaliação à CNN. Restrições ocorreram também durante as eleições de meio de mandato de novembro de 2018, uma vez que os jornalistas foram impedidos de participar de eventos e até mesmo de entrar em seções eleitorais.

Quanto ao Canadá, sua boa posição no Ranking da RSF não deve nos fazer esquecer das tensões entre as autoridades do país e os jornalistas. Nos últimos meses, autoridades do governo federal tentaram impedir que jornalistas cobrissem eventos de interesse público. Em janeiro de 2019, a Real Polícia Montada do Canadá (RCMP) impediu que a imprensa tivesse acesso a terras indígenas onde acontecia uma manifestação contra um projeto de gasoduto. A Suprema Corte do Canadá também decidiu contra o repórter da VICE Ben Makuch, obrigando-o a entregar à RCMP todas as suas comunicações com uma de suas fontes. O caso de uma jornalista investigativa da Radio-Canada, Marie-Maude Denis, que recebeu a ordem de revelar suas fontes, será também examinado pela Suprema Corte em agosto. A Radio-Canada está lutando para que seja respeitada a chamada "lei escudo" (shield law) de 2017 sobre a proteção das fontes jornalísticas.

Repercussões nas fronteiras

Nas fronteiras americanas, os jornalistas são com frequência abordados para longas buscas e verificações de seus equipamentos. Se essa situação já era lamentável antes da posse de Donald Trump, fica claro que piorou, especialmente em novembro de 2018, quando a atenção estava voltada para a chegada de uma "caravana de imigrantes" na fronteira mexicana. Ao mesmo tempo, alguns jornalistas estrangeiros continuam a enfrentar dificuldades para obter simples vistos de viagem para os Estados Unidos, presumivelmente por causa de seu trabalho com grupos considerados terroristas por Washington ou por conta de suas permanências em países como a Síria ou o Irã.

A atitude hostil do governo Trump em relação à mídia é ainda mais preocupante por sua repercussão global. Em outubro de 2018, essas preocupações tomaram um rumo ainda mais concreto quando o colunista do Washington Post e dissidente saudita Jamal Khashoggi foi assassinado no consulado da Arábia Saudita na Turquia. Apesar da esmagadora evidência do envolvimento saudita no assassinato, o presidente Trump continua a se recusar a condenar a Arábia Saudita, que ele considera como "um importante aliado".

Autoritarismo e desinformação acentuam deterioração da liberdade de imprensa na América Latina

A nova edição do Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa revela uma preocupante piora da situação da liberdade de imprensa na América Latina. As condições de trabalho para a imprensa deterioraram-se na maioria dos países da região, onde os jornalistas ainda são frequentemente confrontados com violência, pressões políticas e econômicas e a censura de Estado.

A ligeira melhora observada na edição anterior do Ranking da RSF de 2018 teve vida curta na América Latina. O ambiente no qual os jornalistas da região operam é cada vez maishostil e a cobertura de temas considerados sensíveis é acompanhada por um aumento de casos de violência, intimidação e pressões de todos os tipos. As eleições realizadas no México (144º, +3), no Brasil (105º, -3), na Venezuela (148o, -5) no Paraguai (99º, +8), na Colômbia (129º, +1), no El Salvador (81º, -15) e em Cuba (169º, +3) em 2018 geraram um contexto que favoreceu o recrudescimento de ataques contra jornalistas, perpetrados, entre outros, pela classe política e autoridades públicas, e com particular intensidade nas redes sociais e na internet de modo geral. Esses incidentes ajudaram a reforçar um clima de desconfiança - às vezes ódio - generalizada contra a profissão.

Censura de Estado e derivas autoritárias

Com uma queda de 24 posições, a Nicarágua apresenta o maior declínio dentre os países da região e passa a ocupar o 114ºlugar no Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa. A repressão do governo de Daniel Ortega contra a imprensa independente tomou um novo rumo a partir de abril de 2018 com o agravamento da crise política e a onda de protestos no país. Os jornalistas são constantemente estigmatizados, alvos de campanhas de assédio e ameaças de morte, sem mencionar as prisões arbitrárias. Durante as manifestações, os repórteres da Nicarágua, considerados opositores ou “golpistas”, foram frequentemente atacados pelas forças de segurança, e muitos deles foram forçados ao exílio para não serem, como no caso de alguns colegas, presos acusados de terrorismo.

A situação é igualmente preocupante na Venezuela (148º),que perde mais cinco posiçõesese aproxima perigosamente da parte mais baixa do Ranking. A deriva autoritária do governo de Nicolás Maduro, no poder desde 2013, parece não ter limites. Em 2018, a repressão se intensificou contra a imprensa e a RSF registrou um número recorde de detenções arbitrárias e casos de violência contra jornalistas perpetradas por forças de segurança e pelos serviços de inteligência. A Comissão Nacional de Telecomunicações (Conatel) suspendeu o sinal de canais de rádio e televisão considerados muito críticos e dezenas de jornalistas estrangeiros foram detidos, interrogados e deportados. A deterioração da situação levou muitos profissionais de imprensa a deixarem o país para fugir de ameaças e preservar sua integridade física.

É também para escapar do controle permanente da informação e da repressão que os jornalistas cubanos, considerados críticos demais, optam pelo exílio. Apesar de ter avançado detrês posições, devido em particular à melhoria gradual da cobertura de internet na ilha, permitindo que vozes independentes e blogueiros sejam ouvidos, o regime castrista, agora encarnado pelo Presidente Diaz Canel, segue como o país com a pior classificação na América Latina pelo 22º ano consecutivo, na 169ª posição.

A situação da Bolívia (113o, -3)não é menos alarmante. Seguindo o modelo cubano, o governo do presidente Evo Morales, no poder desde 2006, controla as informações e consegue censurar e silenciar as vozes excessivamente críticas do país, gerando forte autocensura entre os jornalistas.

O medo e a autocensura

O medo e a autocensura estão presentes em muitos países da região, confrontados com níveis dramáticos de violência e corrupção. Esse é o caso na América Central, como em El Salvador, que registra o segundo maior declínio na região (-15) para se encontrar em 81ºlugar no Ranking. As condições de trabalho para a imprensa, que é frequentemente alvo de ataques armados, pressão e intimidação por parte da classe política, se deterioraram significativamente em 2018. A situação é semelhante em Honduras (146º, -5) e na Guatemala (116º), países assolados pela corrupção e pelo crime organizado. Os jornalistas que expressam posições mais críticas ao governo e da mídia comunitária que ousam denunciar os crimes de autoridades públicas se tornam alvos recorrentes de agressões, ameaças e em alguns casos chegam a optar pelo exílio.

O país mais perigoso do continente para a profissão, no entanto, continua sendo o México (144º), com pelo menos 10 jornalistas assassinados em 2018. O conluio entre o crime organizado e as autoridades políticas e administrativas corruptas, especialmente no nível local, representa uma grave ameaça à segurança dos atores da informação e dificulta o funcionamento da justiça em todos os níveis do país. A chegada ao poder do presidente Andrés Manuel López Obrador em 1 de dezembro de 2018, após uma campanha eleitoral marcada por numerosos ataques a jornalistas em todo o país (Ver projeto #AlertaPrensa da RSF e da Propuesta Civica), acalmou em alguma medida as relações entre o poder público e a imprensa mexicana. Esta transição política, juntamente com uma diminuição relativa no número de assassinatos no país (11 casos em 2017), justifica um ligeiro avanço do México no Ranking (+3).

Desinformação e assédio digital

O Brasil caiu 3 posições no Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa, ocupando em 2019 o 105º lugar, e se aproxima da zona vermelha da classificação (situação difícil). O ano de 2018 foi particularmente turbulento, marcado por quatro assassinatos de jornalistas e uma vulnerabilidade cada vez maior dos repórteres independentes que cobrem temas relacionados à corrupção, às políticas públicas ou ao crime organizado em cidades de pequeno e médio porte em todo o país. Acima de tudo, a eleição de Jair Bolsonaro em outubro de 2018, após uma campanha marcada por discursos de ódio, desinformação, ataques à imprensa e desprezo pelos direitos humanos, é um prenúncio de um período sombrio para a democracia e a liberdade de expressão no país.

Em um país onde dois terços da população se informam pelas redes sociais, a plataforma de mensagens WhatsApp desempenhou um papel central na campanha. Sendo a principal fonte de informação para uma maioria (61%) dos eleitores de Bolsonaro, particularmente desconfiados da imprensa nacional, o WhatsApp tomou o lugar das fontes tradicionais de informação. Foi nesse aplicativo que notícias falsas - visando também desacreditar reportagens críticas sobre o candidato -, as campanhas de difamação e outras teorias de conspiração se estruturaram e foram amplamente difundidas e partilhadas. Nesse contexto tenso, os jornalistas brasileiros tornaram-se um alvo preferencial, e são regularmente atacados por grupos disseminadores de ódio, especialmente nas redes sociais.

Esses ataques online contra jornalistas, uma tendência crescente em toda a região, também foram muito virulentos em Honduras, na Nicarágua e, especialmente, na Colômbia (129o, +1). Neste país, onde agressões, ameaças de morte - sobretudo no Twitter - e seqüestros de jornalistas permanecem frequentes, a eleição do presidente conservador Ivan Duque, em agosto passado, não foi acompanhada de sinais encorajadores para uma melhora da situação da liberdade de imprensa.

Entre os outros movimentos significativos na nova edição do Ranking, o Chile (46º) perdeu oito posições. Em 2018, o sigilo das fontes foi frequentemente desafiado, e a RSF repudiou diversos casos de processos judiciais abusivos contra jornalistas que abordavam questões delicadas, como as reivindicações das comunidades Mapuche ou a corrupção da classe política. A situação também se deteriorou na Argentina (57º, -5) e no Equador (97º, -5). A diminuição das tensões entre o governo equatoriano e muitos meios de comunicação privados iniciada desde a eleição do Presidente Lenin Moreno em maio de 2017, foi eclipsada em 2018 pelo sequestro seguido de assassinato da equipe de jornalistas do jornal El Comercio na fronteira colombiana. Este episódio trágico também levantou muitas questões sobre a segurança e os métodos de trabalho nessas zonas de conflito que escapam ao controle das autoridades públicas.

Nesse contexto regional bastante sombrio, a Costa Rica, que continua sendo o país mais bem colocado do continente, com seu 10º lugar no Ranking, é ainda mais excepcional.